ARTIGOS E TRADUÇÕES


BUDISMO: RELIGIÃO, FILOSOFIA OU PSICOLOGIA?
(extraído da tese de mestrado defendida em 2006)

O que realmente é possível saber de uma tradição que ora parece ser uma filosofia, ora uma religião, ora uma psicologia. Como entender o budismo, afinal?
Nos dicionários, o budismo é classificado como uma das maiores religiões do mundo, ao lado do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo. Mas no budismo não há um Deus, ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por si só, causa necessária e fim último de tudo o que existe. Não há dogmas nos quais temos que acreditar. Ao contrário, encoraja-nos a não acreditar em nada que não passe pelo crivo de nossa própria lucidez e experiência. Por outro lado, ao visitarmos um templo budista, veremos pessoas fazendo reverências e prestando homenagens a representações e imagens de Buda, oferecendo-lhes velas, incensos, flores. E a tradição fala da importância da fé. O que entender dessas mensagens aparentemente contraditórias?
Embora o budismo não corresponda exatamente à nossa ideia de religião, também não se classifica no que entendemos por filosofia. No pensamento ocidental, a ideia de que o “racional” e o “analítico” sejam diametralmente opostos ao “espiritual” e ao “intuitivo” data de centenas de anos e é o que marca o início da filosofia grega: a filosofia ocidental é a irrupção do logos no universo do mythos. O logos, ao invés de "contar uma história", uma narrativa, em geral de caráter sagrado, argumenta racionalmente. Logos é a palavra racional do conhecimento do real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração) e realidade (ou seja, os nexos e ligações universais e necessários entre os seres). A linguagem desenvolve-se como poder de conhecimento racional, e as palavras, enquanto conceitos ou ideias, referem-se ao pensamento, à razão e à verdade. Ou seja, muda a maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a realidade e a interpretam, e a filosofia aos poucos vai se separando da religião e do discurso religioso, fundamentado em dogmas não passíveis de crítica intelectual.
No budismo, pede-se que as pessoas investiguem e descubram os ensinamentos do Buda por si mesmas, antes de resolverem adotar a nova “fé”. O poder da lógica percorre a totalidade dos ensinamentos budistas, desde os ensinamentos mais simples, dirigidos aos leigos, até os mais profundos. O conhecimento exige incisivas análises filosóficas e a investigação crítica e racional de cada "verdade". Por outro lado, existem as noções de transcendência, de Verdade Última, do desenvolvimento do sentimento da compaixão, da noção da salvação de todos os seres, totalmente alheias ao discurso filosófico ocidental. O que concluir a partir desses dados?
Em relação à Psicologia, os psicólogos ocidentais têm nutrido, nas últimas décadas, muito interesse pelo budismo, que propõe um conhecimento da mente e de seu funcionamento. Em todos os grupos budistas que proliferam no Ocidente, os estudiosos dessa área estão presentes, e desde o século passado passaram a ser propostos novos modelos de entendimento da mente, que buscam integrar as perspectivas ocidental e oriental da consciência, como por exemplo, Ken Wilber. Alguns autores veem o budismo e as técnicas de meditação budistas, em particular, como um novo tópico na longa lista de terapias disponíveis. Jon Kabat-Zinn, fundador e diretor da Clínica de Redução do Estresse da Universidade de Massachusetts, diretor executivo do Center for Mindfulness in Medicine Health Care and Society e professor de Medicina do University of Massachusetts Medical Center, é conhecido internacionalmente por integrar a meditação na medicina tradicional. Sua equipe utiliza a meditação budista para o tratamento de pacientes com dores crônicas e desordens relacionadas às nossas tensões cotidianas. Essa mesma técnica é aplicada em detentos na tentativa de reduzir comportamentos autodestrutivos, como o uso de drogas e violência nas penitenciárias. No Brasil, a Faculdade Paulista de Medicina, através de profissionais das áreas de psiquiatria e psicologia, dedica atenção ao estudo dos efeitos da meditação em pacientes com diversos tipos de doenças, como a fibromialgia, dores crônicas, estresse e outros. É um campo promissor, que está atraindo muitos médicos e psicólogos brasileiros, e que tende a se expandir nos próximos anos.
Assim, o budismo também entra em nossa cultura como mais uma modalidade terapêutica, entre as muitas disponíveis. Na verdade, a tradição budista oferece-nos maneiras práticas e eficazes de mudar velhos hábitos mentais e comportamentos destrutivos. Mas o budismo não é uma terapia, tal como entendemos este termo. O objetivo da meditação budista não é resolver problemas psicológicos, de dores ou estresse, embora isso possa acontecer (revelando um “efeito colateral” interessante das práticas de meditação). O objetivo real destas, na verdade, é abrir portas para estados de consciência que a psicologia ocidental tradicional nunca descreveu. A visão budista daquilo em que o ser humano pode tornar-se leva-nos para um território muito mais vasto do que aquele que nossa psicologia tradicional mapeia.
Por um lado, temos a cosmovisão budista, que inclui o que poderíamos chamar, em nossa cultura, de religião; inclui, também, a análise filosófica, lógica e argumentativa, que poderíamos chamar de filosofia; e que, além disso, descreve um conhecimento sobre o funcionamento mental, propondo modelos e recursos efetivos de se trabalhar com a mente e atingir estados mais expansivos e saudáveis de ser, que poderíamos reconhecer como uma psicologia. Mas, de fato, essa cosmovisão se apresenta a nós como uma totalidade indivisível, que aborda o homem em todos os seus aspectos de modo concomitante.
O que ocorre é que essa cosmovisão nunca se “encaixará” exatamente no nosso modo de conceber, do mesmo modo que um círculo nunca se encaixa totalmente num quadrado, e isso acaba gerando toda sorte de mal-entendidos e equívocos fundamentais: os filósofos, por um lado, não aceitam totalmente o budismo como uma filosofia, dado o seu lado “transcendente” e “místico”; os representantes das religiões ocidentais não consideram o budismo como uma religião, propriamente dita: já que o Buda é um homem, nunca poderá ser comparado, em sua grandeza espiritual, a Jesus Cristo, filho de Deus.
Esse, a nosso ver, é o grande risco da chegada do budismo no Ocidente: o de ele perder as suas especificidades culturais e conceituais e a riqueza de sua visão espiritual, passando a ser lido e interpretado de um modo “domesticado” e reducionista,  empobrecido em suas premissas epistemológicas fundamentais, devido ao nosso inevitável viés cultural.

(
extraído da tese de mestrado ELEMENTOS PARA UM DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO TRILÍNGÜE INGLÊS-SÂNSCRITO-PORTUGUÊS DE CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE BUDISMO, USP- Depto. De Lingüística da FFLCH, 2006,  Marcia Epstein).


ARTIGOs

Entrevista concedida à Revista Saúde (ed. Abril) 
julho 2017, Marcia Epstein

- De que forma a prática de mindfulness pode ajudar no controle da ansiedade?

Muitas pessoas procuram o mindfulness porque têm problemas relacionados com a ansiedade, causados por um estilo de vida muito estressante e às vezes agravados por problemas médicos. A ansiedade é um dos estados mentais mais disseminados. As pessoas com ansiedade têm tendência a perder-se em ruminações mentais e distrações muitos poderosas, em geral relacionadas à antecipação de consequências desagradáveis a determinado evento.  Quando temos um excesso de pensamentos e preocupações improdutivas podemos, por meio das práticas de mindfulness, aprender a experimentar esses pensamentos de um modo completamente diferente.
Por exemplo, imagine que você está atrasado para um compromisso de trabalho. A pessoa ansiosa geralmente pensa: “Estou atrasado, vou perder meu emprego se eu não chegar lá a tempo, vai ser horrível”. Por meio das práticas de mindfulness você aprende a reconhecer: “Isso é só um pensamento. Não preciso acreditar na história que ele conta.  Vou ficar presente neste momento e não antecipar nenhum desastre”.
Em geral desperdiçamos uma enorme energia reagindo automaticamente e inconscientemente aos acontecimentos externos e às próprias experiências internas. Quando cultivamos mindfulness, aprendemos a canalizar e focar nossas próprias energias desperdiçadas. Aprendemos a nos acalmar o suficiente para ficarmos mais centrados, integrados como pessoa, enxergando a situação com maior clareza. Isso ajuda a canalizar nossa energia com maior eficácia em situações de estresse ou quando nos sentimos ameaçados ou desamparados.

- Os impactos de mindfulness na saúde mental são os mesmos obtidos com outros tipos de meditação ou há algo que seja específico desse tipo de prática (de "atenção plena")?

Um dos efeitos mais significativos da prática regular de meditação é o desenvolvimento de mindfulness – a capacidade de observar a experiência presente sem se engajar ou identificar com o conteúdo de cada pensamento, emoção ou imagem (Marlatt & Gordon, 1985, p.319).
A instrução para a meditação mindfulness é: observa o que predomina na consciência em cada momento”. Aqui a intenção não é escolher um só objeto de atenção, como nas meditações que desenvolvem a concentração, mas explorar a experiência em constante mudança. A prática de mindfulness cultiva o insight ou introspecção na natureza de nossos próprios condicionamentos. É isso o que distingue principalmente a “meditação mindfulness” de outras formas de meditação, como a da concentração e as várias formas de meditação e visualização, e é uma contribuição exclusiva da psicologia budista. Dentro do contexto budista, o termo é vipassana bhavana, que se pode traduzir como o cultivo do insight ou introspecção. Os investigadores e profissionais ocidentais costuma utilizar a expressão “meditação mindfulness” para referir-se a esta prática.  
Os impactos de mindfulness devem-se à extensiva pesquisa científica realizada nos últimos 40 anos a partir do protocolo MBSR (mindfulness-based stress reduction) criado por Jon Kabat-Zinn, em 1979. Os resultados das pesquisas têm mostrado resultados impressionantes das aplicações de protocolos de mindfulness para prevenção de recaída em adições, prevenção de recaída em episódios depressivos, condições como dor crônica, estresse e ansiedade. 


- Na sua experiência clínica, quais são as maiores transformações na vida das pessoas que você pôde observar aplicando mindfulness?

Reproduzo algumas frases dos próprios participantes de grupos de 8 semanas de mindfulness:

“Tenho mais paciência, identifico melhor o que estou sentindo, e minhas emoções negativas ou mau humor duram muito menos. Sou mais gentil comigo mesmo”.

“Um convite para desligar piloto automático e perceber os julgamentos próprios e alheios sem necessariamente de identificar com eles”.

“ O maior benefício é desautomatizar a vida e relativizar os efeitos das situações que acontecem. Descobrir que pensamentos são apenas pensamentos. Isso traz um novo olhar para a realidade. Muda a forma de me relacionar comigo e com as pessoas”.
 
“Levar mais consciência para meu dia a dia, cultivar um estado de presença. Identifico melhor meus momentos de ansiedade e como se refletem no meu corpo. Consigo responder de forma mais positiva, em vez de simplesmente reagir automaticamente.”

“A consciência de que posso escolher minha resposta às diferentes situações do dia a dia.”

“Parar para cuidar de mim mesma”

A meu ver, o cultivo do estado de uma plena presença (estar mindful) implica uma determinação e motivação que são oriundas dos próprios benefícios da prática na vida da pessoa. Podemos fazer uma analogia com a prática de exercícios físicos: os resultados virão, certamente, se você praticar. E quando você vir os resultados, estará motivado a continuar praticando. Até desenvolver uma consciência e uma presença mais plena na sua vida, nas suas atividades e relacionamentos, e em relação a seus próprios pensamentos, emoções e sensações, e uma maior sensação de livre-arbítrio, que você pode escolher como responder aos eventos, sem reagir automaticamente. Isso aos poucos se transformará numa segunda natureza.



- E os principais desafios que elas encontram para incorporar mindfulness na vida?

Conforme relatado pelos alunos:

“Desenvolver a disciplina para a prática formal; ceticismo”
“Indisponibilidade de tempo e cansaço para as práticas formais”

Mais uma vez vou recorrer à analogia com os exercícios físicos: algumas pessoas conseguem incorporá-los à sua vida diária sem maiores dificuldades. Outras pessoas têm mais facilidade de praticar exercícios em aulas de grupo (numa academia, por exemplo), pois há mais gente com a mesma meta e isso contribui para fortalecer a motivação de praticar. No início é preciso vencer uma inércia e uma motivação ou intenção correta para as práticas. 


- Como o conceito de mindfulness se relaciona com o de compaixão?

Jon Kabat-Zinn, desde que iniciou o programa de redução de estresse baseado em mindfulness (MBSR), alegava que a sabedoria da cabeça e a do coração (mindfulness/heartfulness) não são independentes. Mindfulness não se limita à atenção, entendida de forma passiva, mas também diz respeito à ação de atender, estender uma mão a quem necessita, inclusive a si mesmo. Portanto, o conceito de mindfulness integra também a atenção compassiva. 
As práticas meditativas de “amizade” e de compaixão implicam o cultivo de uma atitude mais gentil e bondosa para conosco e os outros. É um aspecto importante do cultivo de mindfulness, também chamado de atenção plena ou presença plena. A prática de compaixão faz a gente superar o autocentramento, o excesso de preocupação com os próprios problemas, com nosso próprio mundinho. Assim, nos abrimos para os outros intencionalmente, expandimos nosso olhar, e acabamos percebendo que, por mais diferentes que sejamos em termos psicológicos, nossas necessidades básicas são muito parecidas: queremos ser felizes, amar e ser amados, temos problemas, tristezas, ansiedades como todo mundo tem. Na tradição budista, sabedoria e compaixão são como duas asas de um pássaro: ele só pode voar se as duas estão presentes.
Mas é importante observar que o conceito de “mindfulness” se ampliou e diversificou muito quando em contato com a ciência e a psicologia ocidentais. Estou aqui me referindo à tradição budista, mas há muitas outras perspectivas sobre mindfulness que se desenvolvem atualmente.

- Pelo que pude entender, os protocolos científicos como o MBSR são indicados para aplicações clínicas determinadas (depressão, dor crônica, etc). Pessoas que não se enquadram nesses casos também podem se beneficiar da prática?

Todas as pessoas podem se beneficiar, na medida em que aprender as práticas e faze-las de modo disciplinado resulta num empoderamento do indivíduo em relação à própria saúde. Ele aprende a acessar recursos internos de autocuidado e a perceber que pode ter muita influência em sua saúde e sensação de bem-estar. Deixa de ser uma vítima passiva de suas próprias reações internas, pensamentos, ruminações, e aprende a lidar com tudo isso de maneira mais eficaz e saudável.

Para aprender é preciso frequentar um programa de oito semanas ou há outros caminhos?

Dá para aprender os fundamentos de mindfulness, até certo ponto, por meio da literatura. Mas para que deixe de ser apenas um conhecimento acadêmico e conceitual, e se transforme numa autêntica experiência, nada substitui um professor qualificado que vai ensinar pela sua própria presença plena, atitude de gentileza e compaixão, atenção ao presente momento.

 -----------------------



Sobre o programa de 8 semanas de mindfulness: Prevenção de Recaídas Baseada em Mindfulness (MBRP) 

No começo deste mês (05/08), foi publicada na revista PNAS, uma revista científica de alto impacto, o sucesso do uso de uma terapia que se baseava em mindfulness na redução de aproximadamente 60% do consumo de cigarros dos pacientes envolvidos.
Esses achados em conjunto com outros já publicados reforçam ainda mais a ideia de que terapias baseadas em mindfulness podem significar um grande passo na luta contra a dependência de drogas. Umas dessas terapias é o Mindfulness-Based Relapse Prevention (Prevenção de Recaída Baseada em Mindfulness) (MBRP).
A melhor maneira de conhecer algo novo é conversando com aqueles que são expert nesse assunto, por isso o Prisma Científico entrou em contato com a Dra. Sarah Bowen, líder do grupo que desenvolveu o MBRP. Sarah é professora do Departamento de Psiquiatria e Ciências Comportamentais da Universidade de Washington em Seattle. Vamos à entrevista!
Prisma Científico – Você poderia explicar pra nós o que é o MBRP e de onde ele veio?
Sarah Bowen – MBRP foi projetado como um programa de cuidado ao paciente que já passou por uma fase inicial de tratamento de algum tipo de comportamento viciante. Normalmente abuso de substâncias mas também já foi usado para dependência de jogo ou comida, essas coisas. Ele foi projetado para integrar a terapia cognitivo-comportamental tradicional, a terapia de prevenção de recaída tradicional – que contam com boas evidências por trás – com práticas de mindfulness, e ele originou exatamente disso. Ele vem do laboratório do Alan Marllat, na Universidade de Washington em Seattle onde ele já fazia pesquisa há muitos anos em prevenção cognitvo-comportamental de recaída. Em paralelo, eu fazia pesquisa em meditação, mas nós não havíamos nos unido ainda. Esse programa foi projetado para integrar essas técnicas e capitalizar nos efeitos benéficos de ambas as abordagens.
PC – Quando você começou a trabalhar com MBRP?
SB – Bom, vamos ver… Nós começamos a desenvolver esse programa em particular em, eu acho que, por volta de 2005 ou 2006. Antes disso eu fazia pesquisa com meditação, mas nós não havíamos montado o programa ainda.
PC – Como o MBRP se diferencia dos outros tratamentos convencionais?
SB – (Risos) Em diversas maneiras. Eu acho que a diferença mais óbvia é que usa o mindfulness e a prática de meditação formal como seus fundamentos. As coisas são construídas ao redor disso, ao invés de fazer uma terapia tradicional e adicionar algumas práticas de mindfulness, o que as pessoas normalmente fazem. O fundamento é realmente meditação e mindfulness e nós pegamos emprestadas coisas de outras abordagens cognitivo-comportamentais. Eu acho que, funcionalmente, a principal diferença é que nós realmente focamos em, ao invés de evitar situações de risco ou tentar não sentir a fissura, nós focamos em como você pode estar atento a quando essas coisas acontecerem e aprender a lidar com o desconforto sem reagir. Na verdade é um treinamento em atenção e técnicas de controle emocional através da meditação.
PC – Um grande problema ao lidar com a dependência se dá pela grande variabilidade entre os dependentes, tais como comorbidades. Como o MBRP lida com essa situação?
SB – Eu acho que essa é uma das coisas maravilhosas dessa abordagem, nós estamos realmente lidando com qualquer tipo de desconforto. Para algumas pessoas, elas podem sentir sintomas de depressão e isso pode ser um gatilho para elas usarem substâncias para aliviar essa depressão. Para outras, pode ser que elas estejam sofrendo de fissura fisiológica e elas usam substâncias para aliviar esse desconforto físico. Nesse tipo de abordagem, não é tão importante qual é o desconforto comórbido, caso ele seja um trauma, uma depressão ou desconforto físico. A abordagem é ensinar as pessoas a como lidar com qualquer tipo de desconforto sem reagir de uma maneira, ou se agarrar em algo que vá consertar isso imediatamente. Dessa maneira, eu penso, e vejo nas sessões clínicas que fazemos, que realmente fala com uma gama muito ampla de pessoas que não tem só um diagnóstico diferente de comorbidade, mas também um diagnóstico primário diferente. Por exemplo, algumas pessoas estão lá porque tem problemas com raiva ou violência, outras por problemas de ansiedade ou desordens alimentares. Realmente é um tipo de prática que pode ser útil pra qualquer um que esteja lutando contra algum tipo de comportamento que não está funcionando bem em suas vidas.
PC – Você acha que o MBRP pode ser usado na saúde pública ou só é possível de ser feito em um contexto privado, devido a aspectos metodológicos?
SB – É uma boa pergunta. Nós não temos muitas pesquisas em contextos diferentes. Nós já trabalhamos em tanto contexto público, que no nosso caso são agências municipais, basicamente agências públicas, como também em clínicas privadas, e sem dúvida funcionou em ambos. Para mim, parece que a chave do problema é: os clientes ou pacientes estão interessados em fazer esse tipo de abordagem? Foi desafiador, por exemplo, quando tivemos clientes que foram mandados para o tratamento pelo sistema penal. Eles são presos por algum delito relacionado a drogas e são mandados para o tratamento só que eles não têm interesse nenhum por meditação. Para essas pessoas, eu não tenho certeza, eu não sei. Nós não temos dados disso, mas para mim parece que não é uma boa ideia. Mas, caso seja um contexto público ou privado, as pessoas pagam ou não por isso, eu acho que se tem o interesse e se tem o terapeuta que saiba como aplicar esse tratamento, então é absolutamente benéfico, e não vejo razões para que não seja.
PC – O MBRP é uma terapia nova e eficaz, mas será que é factível?  Qualquer profissional de saúde é apto a aplicar esse tipo de tratamento ou é necessário um treinamento prévio?
SB – Ótima pergunta. Mais uma vez, nós não temos dados sobre isso ainda, mas é o pensamento de todas as pessoas que começaram a trabalhar com abordagens baseadas em mindfulness como Jon Kabat-Zinn com o MBSR (Mindfulness-based Stress Reduction, Redução de Estresse Baseada em Mindfullnes), Zindel Segal com o MBCT (Mindfulness-based Cognitive Therapy, Terapia Cognitivo-Comportamental Baseada em Mindfulness) e nós com o MBRP de que os terapeutas tenham suas próprias práticas para que eles entendam o que estão ensinando. Não faria sentido ensinar alguém a nadar se você nunca esteve em uma piscina (risos) ou como tocar um instrumento se você nunca tocou. Mas, por alguma razão as pessoas acham que com meditação você não precisa praticar para ensinar. Eu já vi, em nossos estudos, terapeutas que eram ótimos terapeutas, mas que não estavam praticando aquelas técnicas, então o ensino deles era muito, muito diferente. Então, para que possa ensinar do jeito que é pretendido, os terapeutas precisam de treinamento e precisam da sua prática pessoal. Como eu disse, essa é minha opinião, nós não temos dados em relação a isso ainda, mas eu adoraria ver um estudo que realmente se atentasse a isso. Acho que isso vem por ai.
PC – Na sua opinião, quais são os próximos passos do MBRP?
SB – Eu acho que uma coisa que ajudaria a gente a responder as perguntas que você está fazendo, que são perguntas que nós nos questionamos também, seria como disseminar isso? Como treinar os terapeutas e quem são eles? Em que contexto isso vai funcionar? Em outras palavras, nós fizemos esses estudos na nossa pequena faculdade sob um controle estrito. Nós temos dados promissores, mas agora está na hora de jogar isso no mundo e ver o que acontece. O que é importante incluir nos treinamentos? Quem são os terapeutas ou os clientes que podem fazer esse tipo de trabalho? Essas perguntas. Se me dessem vários recursos e “rédea solta” seria isso que eu estudaria (risos). Outra pessoa poderia fazer isso, não precisa ser eu. Eu adoraria ver isso.
PC – Muito obrigado pela conversa Sarah. Fico muito feliz por você ter aceitado o convite pra falar um pouco mais sobre o seu trabalho.
SB – Foi um grande prazer e caso alguma questão nova apareça, fico feliz em respondê-la.
Para conhecer melhor o trabalho da Sarah e de seu grupo na Universidade de Washington visite o site deles: http://www.mindfulrp.com/default.html
fonte: prismacientífico.wordpress.com
-----------------------------------------------------------------------------

c

IMPRENSA: Mente E Cérebro



MEDITAÇÃO PARA COMBATER A DOR CRÔNICA  -  NOVEMBRO / 2012

 Quando aprendemos a viver intensamente o “aqui” e o “agora”, passamos a experimentar o que está realmente presente em cada momento e, não raro, descobrimos que é mais fácil suportar cada sensação de forma individual; esse exercício, já adotado em vários hospitais, ajuda a diminuir o sofrimento de muitos pacientes  

A autora: Marcia Epstein
É psicóloga, mestre em linguística (USP), instrutora certificada de Mindfulness (atenção plena) pela UNIFESP; professora do curso Meditação e Saúde do Instituto SEDES SAPIENTIAE.


"Um elefante enlouquecido e indomado, à solta neste mundo, não inflige mal tão grande quanto os sofrimentos do mais profundo inferno causados pelo violento elefante da mente. Mas, se o elefante de nossa mente for amarrado de todos os lados pela corda da atenção plena, todos os medos cessarão e as virtudes em nossas mãos cairão”, escreveu no século 8º o mestre budista indiano Shantideva (687-763), referindo-se ao poder da concentração para domar os próprios desconfortos. Essa capacidade humana, conhecida há milênios no Oriente, tem atraído nos últimos anos grande atenção de pesquisadores, apontando uma interessante tendência da atualidade. Cada vez mais a ciência tem interagido com fontes milenares de conhecimento, expandindo conceitos sobre saúde e doença, avaliando como escolhas pessoais e estilos de vida, padrões de pensamento e sentimento, relacionamentos e fatores ambientais interagem para influenciar a qualidade de vida das pessoas. A pesquisa nessa área procura articular visões mais abrangentes para a compreensão do que realmente quer dizer “mente”, “corpo”, “saúde” e “doença”.


A meditação tem sido cada vez mais integrada à clínica contemporânea, principalmente na psicologia e na medicina. Inúmeros estudos mostram que a prática regular pode contribuir para a prevenção e o tratamento de diversas doenças e de condições clínicas, principalmente crônicas e não transmissíveis. Em A mente meditativa (Ática, 1988), o psicólogo Daniel Goleman descreve as raízes da meditação em diversas tradições, orientais e ocidentais, como a cabala, o sufismo, o tantra e o budismo tibetano. Em sua pesquisa, ele constata que a mais forte concordância entre as escolas de meditação está na importância de reeducarmos a atenção. A meditação da atenção plena chega até nós por meio do budismo. O termo sânscrito smrti (ou sati, na língua páli) faz referência a “memorar”, mas não há um termo ocidental que resgate totalmente o sentido original, que tem sido traduzido e incorporado nas práticas clínicas contemporâneas e mesmo nas traduções de obras budistas como atenção plena, consciência plena, estar atento ou mentação.


Em Full Catastrophe Living (Bantam Dell, 1990, não traduzido no Brasil), Jon Kabat-Zinn, um dos pioneiros a introduzir a meditação nos a introduzir a meditação no contexto da saúde e o idealizador do programa Manejo de Estresse por meio da Atenção Plena (conhecido pela sigla em inglês MBSR − Mindfulness-Based Stress Reduction), originalmente aplicado à dor crônica, chega à seguinte definição: atenção plena significa concentrar-se de forma particular, intencionalmente, no momento presente e sem julgamentos. A Associação Internacional para o Estudo da Dor (Iasp, na sigla em inglês), principal instituição voltada para o tema, propôs um conceito de dor utilizado por grande parte dos profissionais da saúde: trata-se de “uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a lesão tissular real ou potencial, ou ainda descrita em termos que evocam essa lesão”. Especialistas ressaltam que a dor é “sempre subjetiva”. Essa definição revela a ambiguidade da palavra. Além de ser uma sensação, ela é uma emoção que talvez não esteja associada a uma lesão tissular. Antes de tudo, é uma experiência descrita em termos que evocam essa lesão – excedendo amplamente a noção estritamente neurofisiológica.

ALÉM DO CORPO
Entre as categorias principais de dor, existe a aguda, que se segue a uma lesão e é parte do sistema de alarme do corpo, geralmente curada num prazo de seis semanas. Pode surgir também sem nenhuma lesão óbvia, como a dor de estômago resultante de uma comilança. A dor crônica, contínua por no mínimo três meses, às vezes pode permanecer por décadas. Ela costuma evoluir após uma lesão e persistir depois que a cura do tecido já ocorreu. O processo neurofisiológico nesse caso é diferente dos mecanismos que provocam a dor aguda. Esta desaparece, de modo geral, quando o estímulo doloroso cessa. Seu papel é “informar o corpo” de que há algo errado e fazer com que a pessoa se proteja. Já a dor crônica permanece mesmo quando o estímulo desaparece, como uma memória persistente – e incômoda – do evento que causou o desconforto. Nessa categoria existe também a dor neuropática, que ocorre no sistema nervoso e não é causada por lesão de tecido.

-------------------------------------------------------------------
MEMÓRIA QUE FERE
Podemos nos esquecer do que comemos no almoço, mas certamente nos lembramos de quase tudo o que nos causou dor, pois o nosso sistema nervoso central armazena traços de memória da experiência desagradável para nos “avisar” do perigo caso ocorra situação semelhante. Essa é uma das razões que concorrem para que pessoas com um membro amputado continuem a sentir dor “fantasma”, como se o pé ou braço extirpado, por exemplo, ainda continuasse ali. Mas e se fosse possível apagar essa memória? Uma equipe da Universidade McGill, no Canadá, mostra que o que sempre foi terreno da fIcção científica pode, de fato, se tornar realidade algum dia. Pesquisadores da instituição descobriram que os níveis de uma proteína  que atua fortalecendo as sinapses (conexões entre os neurônios) – aumentam no sistema nervoso central quando o organismo passa por uma estimulação dolorosa. A hipersensibilidade à dor é neutralizada quando a atividade dessa proteína é bloqueada. “Muitos medicamentos que têm a dor como alvo agem no nível periférico, reduzindo a inflamação ou ativando os sistemas de analgesia no cérebro para reduzir a sensação de dor”, explica Terence Coderre, coordenador do grupo de pesquisa. “Essa é a primeira vez que podemos pensar em medicamentos que terão como alvo um traço estabelecido de memória como caminho para a redução da hipersensibilidade à dor”, comemora.   (da redação)
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------

É importante lembrar que o programa de atenção plena aplicada à dor se refere a manifestações crônicas, que resistem a tratamentos médicos e com as quais a pessoa deve conviver. Elas podem resultar de problemas mecânicos devido a uma doença, tal como a artrite (veja quadro na pág. 54); de tensão muscular causada pela má postura ou por desgaste próprio da idade; podem ainda ser deflagradas por um sistema nervoso extremamente sensível. A dor crônica afeta 40 milhões de pessoas só no Brasil e impõe estresses fisiológicos, psicológicos, familiares e econômicos, sendo uma importante causa de incapacitação. Nos últimos anos, têm sido realizadas muitas pesquisas sobre dor com o uso de técnicas de imagens e escaneamento, como tomografia e ressonância magnética. A crescente consciência da complexidade do fenômeno revela que os tratamentos mais eficazes se baseiam no modelo biopsicossocial de saúde (mais abrangente que o biomédico). Essa maneira mais ampla de compreender o ser humano sugere que o modo como vivenciamos a dor é influenciado por muitos fatores: emoções, crenças, componentes sociais e culturais, bem como por nossas experiências. Isso levou os médicos a desenvolver projetos voltados ao manejo da dor, com a participação de fisioterapeutas, anestesistas, terapeutas ocupacionais e psicólogos.

EM OITO SEMANAS
O manejo da dor baseado na atenção plena é um desses programas. Pioneiro desse trabalho, o médico Jon Kabat-Zinn (foto abaixo) criou, com colegas, a Clínica de Redução de Estresse, no Centro Médico da Universidade de Massachusetts, no final da década de 70, onde ensinava como reduzir o estresse por meio da atenção plena. O principal objetivo era ajudar as pessoas que sofriam de dores  crônicas. Desde o início do trabalho, milhares de pacientes já foram beneficiados. O MBSR é um programa estruturado ao longo de oito semanas, nas quais os participantes se reúnem semanalmente por duas horas e meia para vivenciar técnicas de meditação. As pessoas devem também se comprometer com determinadas práticas diárias, com duração média de 45 minutos, em casa ou no trabalho. Todos são instruídos a procurar incorporar a meditação em sua vida diária, fazendo com que atividades rotineiras se tornem, de certa forma, uma prática meditativa. As principais técnicas utilizadas são a atenção plena na respiração, o “escaneamento” corporal, a caminhada meditativa e práticas leves de ioga e pilates adaptadas às condições ou limitações físicas dos pacientes com dor. Após a conclusão do programa de oito semanas, os participantes do MBSR estão habilitados para continuar as práticas por conta própria. Na prática do escaneamento ou consciência corporal, por exemplo, a pessoa leva a atenção para diferentes partes do corpo, uma por vez, sentindo....



-------------------------------------------------------------------------------------


ARTRITE, CANSAÇO E DEPRESSÃO
Um terço dos adultos americanos com artrite (inflamação das articulações) com mais de 45 anos diz sofrer de depressão-ansiedade, sendo esta última quase duas vezes mais frequente. Apesar disso, mais de metade desses pacientes alegou jamais ter buscado ajuda psicológica para estes problemas. As informações, apresentadas em um artigo recente, publicado no periódico científico Arthritis Care&Research, surpreenderam os cientistas, já que várias pesquisas anteriores estabeleciam ligações entre dor crônica e depressão. “Além disso, costumamos associar a artrite a consequências incapacitantes, sem levar em conta seus efeitos emocionais, que também podem ser muito profundos”, afi rma o reumatologista Sergio Bontempi Lanzotti, diretor do Instituto de Reumatologia e Doenças Osteoarticulares (Iredo), em São Paulo. No novo estudo, os pesquisadores acompanharam mais de 1.700 adultos, com 45 anos ou mais, todos diagnosticados com artrite ou outras doenças reumáticas, como osteoartrose (processo degenerativo das articulações ósseas). Os participantes receberam questionários para determinar seu bem-estar emocional. “A relação entre ansiedade, depressão e dor crônica é complexa, os sintomas aparecem tanto de forma independente como sinergicamente, fazendo com que uma condição se torne fator de risco para outra”, afirma Lanzotti. Ele ressalta que, muitas vezes, os profissionais da saúde supõem que a ansiedade simplesmente acompanha a depressão. Mas, afinal, o que a provoca? Segundo o diretor do Iredo, “quando as pessoas começam a conviver com a artrite passam a se dar conta das possíveis limitações que a doença impõe e isso costuma causar muito sofrimento físico e mental”. Além das limitações, muitos pacientes com artrite podem se mostrar hesitantes para fazer qualquer exercício físico ou simplesmente em sair de casa, o que geralmente contribui para reforçar sentimentos de ansiedade. Pessoas que convivem com problemas crônicos, como a artrite, compreensivelmente, tendem a ficar assustadas não só com a doença em si, mas também com a ideia de se tornarem incapazes de dar conta das mais variadas atividades. De fato, podem surgir difi culdades em diversas esferas da vida: casamento, empregos, relações sociais. Por isso, é tão importante que pacientes com artrite busquem acompanhamento psicológico. “Precisamos tratar esse quadro de forma ampla, olhando o paciente de forma abrangente, salienta Lanzotti. (da redação)
----------------------------------------------------------------------------------------

(cont.) ...profundamente aquela região, simplesmente notando o que está ocorrendo, sem julgar, comentar ou querer modificar nada. Se perceber tensão ou dor naquela área, é indicado apenas se dar conta dessa sensação, sem ansiedade. Com a prática contínua, as pessoas tendem a desenvolver uma consciência cada vez mais sutil do próprio corpo e, em vez de lutarem contra a dor, estabelecem em relação a ela uma atitude “suave”. Em 40 anos, esse programa se disseminou por 400 hospitais americanos. É aceito, por exemplo, no renomado Memorial Sloan-Kettering Cancer Center. Um programa nos mesmos moldes foi desenvolvido na Inglaterra, por Vidyamala Burch, autor de Viva bem com a dor e a doença – O método da atenção plena (Summus, 2011). No Brasil, o Hospital Israelita Albert Einstein faz esse trabalho com pacientes oncológicos. Alguns questionamentos, porém, frequentemente aparecem. Afinal, quais são os benefícios médicos efetivos dessas práticas? Elas de fato reduzem a dor ou simplesmente nos ajudam a lidar melhor com ela? Resultados de estudos clínicos não deixam dúvidas ao demonstrar que a prática da meditação da atenção plena tem o duplo efeito de aumentar a capacidade de lidar com os efeitos da dor e também reduzi-la. Um trabalho desenvolvido por pesquisadores do General Hospital Psychiatry  acompanhou 51 pacientes com dor crônica que não haviam apresentado melhora com os cuidados da medicina tradicional. As categorias dominantes de dor eram na parte inferior das costas, nos ombros e no pescoço, dores de cabeça, na face e no peitoral (não coronária). Em  um programa de meditação de dez semanas, 65% dos pacientes tiveram redução dos níveis de dor em mais de 33%, e metade, em mais de 50% – uma melhora notável.

SEM JULGAR OU ROTULAR
Desde cedo incorporamos a aversão à dor como um valor social. Até mesmo pensar sobre o desconforto e o sofrimento nos causa repulsa. Não por acaso recorremos a medicamentos assim que percebemos a chegada da menor dor de cabeça. Para Kabat-Zinn, essa relação é um obstáculo na aprendizagem de viver bem com a dor crônica, pois exacerba a tensão física na área afetada, provocando desconforto adicional. A dor física e o sofrimento emocional estão indissociavelmente interligados, como há muito tempo já sabe a área “psi”, conforme ressaltam a psicanálise e a psicossomática. Qualquer dor é acompanhada de sofrimento e resistência, num entrelace fisiopsíquico que não deixa dúvidas sobre a unidade e a dinâmica existentes entre mente e corpo. Levando isso em conta, a prática da atenção plena em pacientes com dor crônica é particularmente eficaz porque ajuda a distinguir, por meio da experiência pessoal e subjetiva, sensações físicas da dor nos processos mentais e emocionais que aumentam o sofrimento. A dor passa a ser vista apenas como “outra sensação”, e o medo de senti-la é reduzido de maneira significativa. Considerando que a dor seja uma experiência, conforme a definição da Iasp, no contexto terapêutico as técnicas de meditação têm o objetivo de promover mudanças que favoreçam a aceitação radical da experiência. Com atenção plena, entramos em nossa experiência atual e simplesmente permanecemos presentes enquanto ela acontece, incluindo qualquer dor que possa ocorrer. Observamos as diferentes sensações que rotulamos coletivamente como “dor”, entramos em contato com a sensação “nua e crua” de cada momento, sem rotular, julgar ou responder com aversão – apenas registrando o que ocorre. Podemos, por exemplo, notar a presença de formigamento, vibração, palpitação, calor, frio, tensão etc. Quando paramos de solidificar o que sentimos no rótulo genérico de dor e entramos na experiência, vivenciando o que está realmente presente em cada momento, descobrimos que cada sensação individual é mais fácil de suportar. Às vezes notamos que não há dor nenhuma presente ou que as sensações que sentimos são neutras ou até mesmo agradáveis. Sem atenção plena, nossas reações são habituais e automáticas. A dor física leva imediatamente a pensamentos como “isso nunca vai acabar”, “o que estou sentindo só vai piorar”, “eu não aguento mais” ou “o que eu fiz para merecer tudo isso?”. Esses raciocínios, por sua vez, provocam ansiedade, desânimo ou raiva, porque nos identificamos com eles. A prática da atenção plena nos leva a observar nossas formas de pensar e a constatar que são apenas divagações e crenças – e não fatos e verdades absolutas. Além disso, as práticas nos levam a ter maior consciência do corpo físico, das emoções, dos pensamentos e da interação entre todos. A atenção plena nos faz ver o cenário todo, do qual a dor é apenas uma parte. Começamos a ver que, apesar de a dor estar presente, ela não constitui a totalidade de nossa experiência. Começamos a nos relacionar com a dor dessa perspectiva de totalidade. Isso restitui o autodomínio, diminuindo a sensação de desamparo. Em vez disso, são despertados aspectos como curiosidade e capacidade de acolhimento, que ajudam a transformar radicalmente a forma como nos relacionamos com as experiências difíceis.


PARA SABER MAIS
Viver agora. Sarah Silverton. Alaúde, 2012.
Viva bem com a dor e a doença – O método da atenção plena. Vidyamala Burch. Summus, 2011.
A mente alerta. Jon Kabat-Zinn. Objetiva, 2001.
A mente meditativa. Daniel Goleman. Ática, 1988.
-----------------------------------------------

Jornal de Itatiba 

Artigo de 23/02/2015:

PROMOÇÃO DE SAÚDE E PREVENÇÃO DO ESTRESSE COM BASE EM  MINDFULNESS
 Autora: Marcia Epstein (psicóloga, mestre em linguística (USP), professora de Meditação e Saúde do Instituto Sedes Sapientiae e aluna do Programa de Extensão em Mindfulness e Promoção de Saúde da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)


Mindfulness (smrti em sânscrito) chega até nós por meio das tradições contemplativas. Na Índia antiga, o termo implica lembrar, especialmente lembrar do passado, dos textos históricos importantes. Na época budista, o termo passa a significar lembrar do presente: tirar a mente de seu estado fragmentado, disperso, distraído, e trazê-la de volta a algum grau de foco. Em geral estamos preocupados com o passado, ou com o futuro. Estamos preocupados com nossos projetos. Estamos preocupados com nossas preocupações! O que vai acontecer? Um mestre budista indiano do século VIII, Shantideva, expressa num longo poema:

"Um elefante enlouquecido e indomado, à solta neste mundo, não inflige mal tão grande quanto os sofrimentos do mais profundo inferno causados pelo violento elefante da mente. Mas, se o elefante de nossa mente for amarrado de todos os lados pela corda de mindfulness, todos os medos cessarão e as virtudes em nossas mãos cairão”.

Ainda não se encontrou uma palavra ocidental que resgate totalmente o sentido original do termo original sânscrito, que tem sido traduzido e incorporado nas práticas clínicas contemporâneas e mesmo nas traduções de obras budistas como mindfulness (em inglês) e atenção plena, consciência plena, estar atento e outros (em português e espanhol).  
Mindfulness é o cultivo da habilidade de prestar atenção ao momento presente. A prática de mindfulness implica trazer a mente para o momento presente, de uma maneira aberta à experiência, sem críticas, sem julgamentos. Um contraponto à mente habitual que divaga entre o passado ou o futuro, preocupada, perdida em pensamentos, emoções, distraída.
Viver no momento, perceber o que está acontecendo e escolher a forma de responder às experiências, em vez de ser impelido pelas reações habituais, é uma ferramenta poderosa ao poder de todos nós. No âmbito da saúde isso permite que sejamos ativos participantes de nosso processo de cura.
No Ocidente, as práticas de mindfulness têm sido cada vez mais integradas à clínica contemporânea, principalmente à psicologia e à medicina. Inúmeros estudos mostram que a prática regular pode contribuir para a prevenção e o tratamento de diversas doenças e de condições clínicas, principalmente crônicas e não transmissíveis. As intervenções baseadas em mindfulness reduzem a ansiedade, tornam a respiração equilibrada e profunda e melhoram a oxigenação e a frequência cardíaca. Seu reflexo no sono é um repouso mais tranquilo, sem interrupções. Além disso, atenuam enxaquecas e resfriados, acelera a recuperação no pós-operatório e auxilia a digestão alimentar. No campo psíquico, a prática mantém a pessoa em relativo estado de equilíbrio, com uma lucidez que a impede de entrar em conflitos emocionais internos, principalmente de origem afetiva. Há, por parte de quem a pratica, muito mais clareza mental, objetividade, paciência, compreensão e justiça.

Programa ESTRUTURADO EM OITO SEMANAS

Em FULL CATASTROPHE LIVING (Bantam Dell, 1990, não traduzido no Brasil), Jon Kabat-Zinn, um dos pioneiros a introduzir a meditação no contexto da saúde e o idealizador do programa Manejo de Estresse Baseado em Mindfulness (Mindfulness-Based Stress Reduction), originalmente aplicado à dor crônica, chega à seguinte definição: mindfulness significa concentrar-se de forma particular, intencionalmente, no momento presente e sem julgamentos. Pioneiro desse trabalho, o médico Jon Kabat-Zinn (foto abaixo) criou, com colegas, a Clínica de Redução de Estresse, no Centro Médico da Universidade de Massachusetts, no final da década de 70, onde ensinava como reduzir o estresse por meio da atenção plena. O principal objetivo era ajudar as pessoas que sofriam de dores crônicas. Desde o início do trabalho, milhares de pacientes já foram beneficiados.
O MBSR é um programa estruturado ao longo de oito semanas, nas quais os participantes se reúnem semanalmente por duas horas e meia para vivenciar técnicas de meditação. As pessoas devem também se comprometer com determinadas práticas diárias, com duração média de 45 minutos, em casa ou no trabalho. Todos são instruídos a procurar incorporar a meditação em sua vida diária, fazendo com que atividades rotineiras se tornem, de certa forma, uma prática meditativa. As principais técnicas utilizadas são a atenção plena na respiração, o “escaneamento” corporal, a caminhada meditativa e práticas leves de ioga e pilates, adaptadas às condições ou limitações físicas dos pacientes. Após a conclusão do programa de oito semanas, os participantes do MBSR estão habilitados para continuar as práticas por conta própria.
Nos últimos quarenta anos, esse programa se disseminou por 400 hospitais americanos. É aceito, por exemplo, no renomado Memorial Sloan-Kettering Cancer Center. No Brasil, a prática de meditação ganha espaço assegurado pela Política de Práticas Integrativas e Complementares do SUS, implementada em 2006 pelo Ministério da Saúde. O Hospital Israelita Albert Einstein e o Hospital das Clínicas, bem como algumas unidades do SUS, adotam essa prática de oito semanas com pacientes oncológicos e outros. As pesquisas acadêmicas se multiplicam num ritmo impressionante. É esse programa que estamos trazendo agora a Itatiba.
O ponto de partida, seja nas tradições antigas ou na ciência moderna, é o sofrimento humano. Porém, mindfulness vai além do que entendemos geralmente por saúde, pois exige certas escolhas prévias: uma postura ética frente ao mundo. Não posso ter uma atitude predatória em relação ao outro. Não posso utilizar a minha vida como uma fonte de sucesso unicamente para mim, a qualquer custo. Se não reconheço meu semelhante, não posso ser um bom praticante, porque estou inserido num universo e o que acontece a esse universo está acontecendo comigo. Ou seja, mindfulness não deve ser confundido com uma nova técnica que faz bem para saúde, embora não exclua esse aspecto. É, antes de tudo, uma maneira de ser e de estar no mundo, com mais consciência da interconexão entre todas as coisas, o que implica maior sabedoria e generosidade, mais abertura e equanimidade.

PARA SABER MAIS
Viva bem com a dor e a doença – O método da atenção plena. Vidyamala Burch. Summus, 2011.
------------------------------------------

4 comentários:

Anônimo disse...

Seus artigos são excelentes, parabéns!
Tereza

Patrícia Bonazza disse...

Excelente os artigos, esclarecedores e muito bem escritos!
abraço,
Patrícia Bonazza

Wagner Beraldo disse...

Gente séria, fazendo coisa séria...
parabéns Marcia, irei voltar...

Matias Caetano disse...

Que maravilha esta sua página querida professora.

Muito obrigado!

Matias.